Quando eu era miúda os desenhos animados não eram perfeitos. A maioria nem sequer tinha aquele efeito de profundidade nas imagens, ou qualidade de imagem.
Via o Tarzan lutar com jaguares no meio da selva, balançar-se em lianas e, fizesse chuva ou fizesse sol, ele andava sempre com a mesma roupa, ou seja roupa quase nenhuma. Vi a Jane, rapariga londrina e certinha, "casar" com o tal Tarzan e ficar a viver na selva. Foram felizes, a Jane perdeu algumas manias, o Tarzan ganhou algumas maneiras.
Vi a Heidi ir pastar as cabras para o meio das mais altas montanhas dos Alpes com um vestido de Verão e descalça. Vi-a correr pelos montes, pela terra, por tudo quanto era canto e esquina. Vi-a dormir em palha coberta com um simples lençol. E mais sem pôr os pés na escola. Era uma rapariguinha bondosa, simpática, justa e valorosa, acima de tudo uma boa amiga.
Vi a Pipi das Meias Altas fazer polícias subir aos telhados, comprar sacos cheios de doces, mandar uma mistura de remédios pelo esgoto, dormir numa cama desconjuntada, inventar criar, fazer o mundo girar. Tornar um balde e uma pedra divertidos. Vivia sozinha com um macaco, o Sr. Nilson, e o Tiozinho, um cavalo. Tinha por amigos o Tommy e a Anita. Era feliz.
Vi o Pinóquio contar mentiras, corrigir os erros, entrar numa baleia, vencer a sua meta.
Vi o Marco correr o mundo à procura da mãe, com um macaco ao ombro.
Vi o Peter Pan fazer caretas a um perigoso pirata. A levar consigo para a Terra do Nunca dois miúdos e a irmã, meter-se com sereias e falar com fadas. Ao mesmo tempo vivia numa casa dentro de uma árvore com os Meninos Perdidos.
Li histórias de um rapazinho feiticeiro que vivia debaixo das escadas, com uma cicatriz na testa, que se opôs contra um feiticeiro malvado, fez amigos, ganhou confiança, perdeu colegas, adquiriu conhecimento, desenvolveu capacidades. Tornou-se bom por errar e aprender. Fez o que era correcto quando confrontado com escolhas e situações difíceis. Também se meteu em sarilhos, (e que deles), e safou-se dos mesmo às vezes castigado, outras sem ser apanhado.
Vi a Bela aceitar trocar a sua vida pela liberdade do pai e transformar a fera em príncipe por se manter fiel a si própria.
A Branca de Neve acabou a viver com sete homenzinhos, a falar com animais até ser salva pelo Príncipe Encantado. Nem por uma vez perdeu a esperança. Cantava no trabalho.
A Yasmin viveu aventuras com um génio da lâmpada e um Rato de Rua fabuloso.
A Pequena Sereia desobedeceu ao pai vezes e vezes sem conta, e vendeu a voz à bruxa do mar em troca de pernas.
Acompanhei (e acompanho) o Ash, o Brook e a Mistsy na sua busca por pokemóns, sozinhos pelo meio do mundo e mais além a lutar contra a Team Rocket!
Passei por duas gémeas que viveram a sua vida de colegiais de forma divertida, às vezes proibida com as companheiras como a Ilda a Joana a Tony e Carlota, e que se tornaram boas pessoas e tenho a certeza são hoje grandes personagens. Da mesma forma li a história da Diana e da irmã mais nova que foram para o Colégio das Quatro Torres e fizeram outras tantas tropelias com a Guida, a Celeste, a Alice a Berta e todas as outras. A Diana tinha um mau génio tremendo, a Berta era super distraída, a Alice abusava das partidas, a Celeste era demasiado recatada...
Também conheci um grupo de Cinco. A Zé, o Júlio, o David, a Ana e o Tim que todas as férias se metiam numa aventura nova, tomavam decisões arriscadas e encarregavam-se de tarefas impossíveis, fazendo os possíveis por não perturbar o Tio Alberto.
Honestamente vi e li sobre tantas coisas, que hoje dizem ser erradas para as crianças e potencialmente perturbadoras, e sou quem sou com orgulho nisso que decidi fazer esta análise.
Quando era miúda eu escolhia os programas que gostava de ver e apagava a tv e ia encher-me de terra ou trepar à laranjeira para comer laranjas, quando não estava interessada. No outro dia ouvi o meu irmão dizer "Não mudes! Essa é a minha publicidade favorita!". Todos os desenhos animados são os preferidos, e sabe o dia da semana pela programação televisiva. E não é o único.
Hoje os desenhos animados e os livros são perfeitamente mais adequados. Temos animais com rodas e cores esquisitas que falam de forma infantilóide (não infantil, infantilóide), fadas super esqueléticas e anormalmente bonitas com namorados igualmente espantosos (quantas pessoas bonitas existem, serão todas assim?), temos vampiros que brilham e têm olhos amarelos e são masoquisticamente simpáticos, lobisomens independentes da lua cheia, e nem me façam falar da Dora e do seu método de ensinar inglês, ou dos desenhos animados interactivos como lhes chamam.
Quero mais Kim Possible, mais Pokémon, mais Harry Potter e menos idiotice sem moral e sem ponto em que tudo é cor de rosa e faz sonhar de um mundo impossível e perfeito e aborrecido e idiota.
Sim eu vi tudo aquilo e não trepei telhados, apesar de ter trepado árvores, e não aninhei ratos no colo, apesar de não morrer de medo se visse um, e não acho a morte algo assustador e terrível, antes aprendi a aceitá-la e a perceber que é tão natural como a vida. Sim eu enterrei os pés na terra do quintal sem pedir análises a um laboratório sofisticado, bebi água do poço, sem saber o que tinha ou deixava de ter. Sim fui arranhada por gatos, cães, coelhos, bicada por galinhas, esfolei os joelhos e as mãos, comi laranjas e maracujás a mais, em vez de me empanturrar de chocolates. E não fiquei traumatizada, nem doente, nem uma adolescente revoltada e incompreendida que só faz asneiras. Agora todos têm muito medo do que os desenhos animados e os livros podem fazer à mente inocente das crianças. Portanto só a coisa mais idiota e sem significado, moral ou ensinamento passa na televisão e nas páginas.
Têm mais valor os livros e séries que nos arrancam lágrimas mas também gargalhadas que aqueles que nos tornam robots avidamente à espera da próxima pergunta de "Where is the river? Can you see the river?". Isto para todos os pais que consideram os desenhos animados e livros antigos prejudiciais e más influências. Aquilo que se adquire de alguma coisa é aquilo que nós vemos. Sentimos e vivemos de forma diferente de pessoa para pessoa. Get that. And, please, cut the crap.